Cardeal Orani João Tempesta - Arcebispo do Rio de
Janeiro (RJ)
A questão do bem e do mal não é mera formulação de uma
mente humana pouco ocupada, mas, ao contrário, é uma realidade viva que se
apresenta a cada um de nós desde as primeiras páginas da Sagrada Escritura e em
tantos outros documentos históricos dos primórdios das diversas civilizações.
A título de definição precisa, à luz da Filosofia,
constatamos que pode ser chamado de bem “tudo o que possui um valor moral ou
físico positivo, constituindo o objeto ou fim da ação humana”. Para
Aristóteles, o bem ‘é aquilo a que todos os seres aspiram’; ‘O bem é desejável
quando ele interessa a um indivíduo isolado, mas seu caráter é mais belo e mais
divino quando se aplica a um povo e a Estados inteiros’. “Tanto para os antigos
quanto para os escolásticos, o bem designa, em última instância, o Ser que
possui a perfeição absoluta: Deus” (...) “Enquanto conceito normativo
fundamental na ordem ética, o bem designa aquilo que é conforme ao ideal e às
normas da moral” (H. Japiassú; D. Marcondes. Dicionário Básico de Filosofia.
Rio de Janeiro: JZE, 1999).
O mal, por sua vez, designa “em um sentido geral, tudo
o que é negativo, nocivo ou prejudicial a alguém”. ‘Podemos considerar o mal em
um sentido metafísico, físico ou moral. O mal metafísico consiste na simples
imperfeição, o mal físico no sofrimento, e o mal moral no pecado’ (Leibniz)”
(idem). Contra a tese maniqueísta – segundo a qual há dois princípios
coeternos, um bom e um mal que têm existência em si mesmos – a filosofia e a
teologia cristãs se levantaram, especialmente com Santo Agostinho, século V,
que fora maniqueísta, para dizer que o mal não existe em um sentido absoluto,
mas apenas como imperfeição, limitação de um ser. Desse modo, a escuridão não
tem existência própria, ela só pode surgir na falta da luz.
Isso posto, voltemo-nos para a Sagrada Escritura, cujas
primeiras páginas deixam claro, na linguagem própria dos primeiros capítulos do
Gênesis, que Deus criou o mundo material – reino mineral, vegetal e animal
irracional – e espiritual, os anjos do céu, por meio de sua palavra (dabar) e
viu que “tudo era bom” (por ex. Gn 1,10). Fez, em seguida, o ser humano para um
lugar especial, pois ele sintetiza, em si, o mundo material e espiritual, uma
vez que tem a alma dada diretamente por Deus. Ao contemplar o homem, feito à
sua imagem e semelhança, dentre os seres criados, o Senhor viu que “tudo era
muito bom” (cf. Gn 1,31).
Neste universo criado, reina uma ordem e harmonia
própria a refletirem a sabedoria do seu Autor que tudo criou por amor para
dar-Lhe glória e louvor: as criaturas irracionais pelo simples fato de
existirem e realizarem a função para a qual foram feitas e nós, criaturas
racionais, para glorificarmos a Deus por nossos atos, mas, especialmente, por
meio da oração pessoal e comunitária. Neste último modo de rezar está a Santa
Missa, culto por excelência ao Pai celestial.
No entanto, à diferença das criaturas irracionais, que
seguem as rígidas leis impostas pela própria natureza, as criaturas racionais
têm a liberdade de escolha e, por isso, podem optar pelo bem ou contra ele,
praticando o mal. Tal foi o que se deu quando Deus colocou os anjos à prova:
parte deles permaneceu fiel, mas outros se rebelaram por soberba e foram, por
isso, expulsos do céu. São os anjos maus ou demônios, cuja existência não é mera
construção literária, mas realidade teológica, conforme atesta a Escritura e a
Tradição da Igreja (Catecismo da Igreja Católica n. 391-395).
Por esses dados, já se vê que há uma opção entre o bem
e o mal, entre anjos e demônios, entre a geração da mulher e da serpente, como
se lê em Gênesis 3,15. Aí, o Senhor disse à serpente “Porei hostilidade entre
ti e a mulher, entre tua linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça e
tu lhe ferirás o calcanhar”. A nota “j” da Bíblia de Jerusalém explica que “o
texto hebraico, anunciando uma hostilidade entre a raça da serpente e a da
mulher, opõe o homem ao Diabo e à sua ‘raça’ e deixa entrever a vitória final
do homem: é um primeiro anúncio da salvação, o ‘Proto-Evangelho’. A tradução
grega, começando a última frase por um pronome masculino, atribui essa vitória
não à linhagem da mulher em geral, mas a um dos filhos da mulher. Assim, fica
esboçada a interpretação messiânica que muitos Padres [=Pais da Igreja nos
primeiros setes séculos] explicitarão. Com o Messias fica implicada sua Mãe, e
a interpretação mariológica da tradução latina ipsa conteret tornou-se
tradicional na Igreja”.
Se a vitória por excelência sobre o diabo, maior
interessado no mal, cabe ao Senhor Jesus, o Filho unigênito de Deus, nós que,
pela graça do Batismo nos tornamos filhos no Filho (Gl 4,5), também
participamos dessa luta e dessa vitória. É São Luis Maria Grignion de Montfort
quem assevera que “uma única inimizade Deus promoveu e estabeleceu inimizade
irreconciliável, que não só há de durar, mas aumentar até o fim: a inimizade
entre Maria, sua digna Mãe, e o demônio; entre os filhos e servos da Santíssima
Virgem e os filhos sequazes de Lúcifer; de modo que Maria é a mais terrível
inimiga que Deus armou contra o demônio” (Tratado da verdadeira devoção à
Santíssima Virgem. 32ª ed. Vozes: Petrópolis, 2003, n. 52). E mais: continua o
Santo do século XVIII a dizer que essa inimizade se arrasta entre as duas
gerações daí advinda, a do bem e a do mal, ao escrever que “Deus não pôs
somente inimizade, mas inimizades, e não somente entre Maria e o demônio, mas
também entre a posteridade da Santíssima Virgem e a posteridad
e do demônio. Quer dizer, Deus estabeleceu inimizades,
antipatias e ódios secretos entre os verdadeiros filhos e servos da Santíssima
Virgem e os filhos e escravos do demônio” (n. 54).
“Os filhos de Belial, os escravos de Satã, os amigos do
“mundo” (pois é a mesma coisa) – continua São Luis – sempre perseguiram até
hoje e perseguirão no futuro aqueles que pertencem à Santíssima Virgem, como
outrora Caim perseguiu seu irmão Abel, e Esaú, seu irmão Jacó, figurando os
réprobos e os predestinados. Mas a humildade de Maria será sempre vitoriosa na
luta contra esse orgulhoso, e tão grande será a vitória final que ela chegará
ao ponto de esmagar-lhe a cabeça, sede de todo orgulho. Ela descobrirá sempre
sua malícia de serpente, desvendará suas tramas infernais, desfará seus
conselhos diabólicos, e até ao fim dos tempos garantirá seus fiéis servidores
contra as garras de tão cruel inimigo” (idem).
Como prova do que diz São Luis, o Pe. Paschoal Rangel
explica, em seu livro Maria, Maria... Ladainha: invocações e metáforas feitas
para louvar. Belo Horizonte: O Lutador, 1991, p. 83-84, duas das muitas
importantes intercessões de Nossa Senhora em favor da Igreja: a primeira se deu
em 1571, com o Papa Pio V. Forças ameaçavam tomar a Europa para subjugá-la. O
Papa recorreu ao auxílio da Santíssima Vigem e a derrota dos invasores veio de
imediato. Pio V incluiu, então, na Ladainha de Nossa Senhora a invocação:
Auxilium christianorum, ora pro nobis (Auxílio dos cristãos, rogai por nós); a
segunda foi em 1816, com o Papa Pio VII. Este fora encarcerado por Napoleão e
recorreu à Mãe de Deus a fim de encontrar forças para resistir resoluto ao
adversário. Demorou um pouco, mas Napoleão perdeu o trono e o Papa voltou a
Roma entre aplausos do povo. Em gratidão à Virgem Maria, o Pontífice instituiu
a festa de Nossa Senhora Auxiliadora, o Auxilium christianorum, para o dia 24
de maio.
Voltemos à Sagrada Escritura que, dando sequência à
opção entre o bem e o mal, mostra como foi por insídia do diabo que o pecado e
a morte entraram no mundo, por isso o Senhor Jesus, vida por excelência (Jo
14,6), veio até nós para derrotar o pecado, a morte e o demônio com seu sacrifício
de cruz.
Sim, toda vida e obra de Cristo é redentora – redenção
é a recuperação de um objeto precioso mediante pagamento, o que supõe um regime
de escravidão a ser superado – que pode ser entendida em dois aspectos: a
redenção físico-mística ou, como enfatizavam os antigos teólogos orientais, a
redenção por contato. Ela significa que desde a Sua conceição no seio materno
de Maria, passando pela sua comparação identificadora com objetos diversos
(pão, luz, porta, videira, cordeiro etc.), seu batismo, pregação, milagres
etc., está em curso o processo de redenção do mundo. Tudo o que tem contato com
o homem é transfigurado para uma realidade nova, a realidade recriada por
Cristo.
Contudo, é na morte e ressurreição do Senhor que a
redenção propiciatória se dá. É nesses eventos que se manifesta o imenso amor
puramente benevolente de Deus por nós (cf. Jo 4,10; 2Cor 5,18), cujo Filho se
entrega, como sacerdote, altar e cordeiro em expiação (cf. 1Jo 2,2) para
derrotar o pecado, a morte e o diabo, realidades reinantes neste mundo até
àquela hora.
Se a carne foi o instrumento com o qual o velho homem,
Adão, pecou, a carne do novo homem, Cristo, trouxe-nos a salvação. Isso é a
recapitulação (usar o mesmo instrumento do mal para o bem, cf. Rm 8,3). Desse
modo, o ser humano pecador torna-se, no sacrifício de Cristo, ser humano
redimido e, por isso, aberto à graça de Deus.
O demônio foi despojado de seu poder (cf. Jo 12,31; Cl
2,13-15), embora, desde o início, ele quisesse dominar o Senhor Jesus
tentando-O diretamente (cf. Mt 4,1-11; Lc 22,3.53) ou instigando os homens
contra Cristo (cf. Jo 13,2; 1Cor 2,8). Todas as suas tentativas, diretas ou
indiretas, foram, no entanto, frustradas, pois o Senhor Jesus é igual a nós em
tudo, menos no pecado. Sua carne humana escondia a Divindade capaz de enfrentar
e derrotar todo mal.
A morte também foi derrotada, pois Cristo, inocente
como era, nada devia à morte (cf. Jo 12,31; 14,30), por isso ela não pôde
detê-lo no cárcere, como tinha feito até aquele momento com os demais homens.
Ao contrário, sua aparente derrota imposta ao Senhor serviu-Lhe de ponte para a
Sua grandiosa vitória na Ressurreição corporal, centro da mensagem cristã (1Cor
15,14). Assim se dá até hoje, os homens e mulheres continuam, sem exceção, a
morrer, mas essa aparente dominação serve de passagem para a vida definitiva em
Deus. No dia da consumação final, será a morte totalmente destruída (cf. 1Cor
15,16), embora já esteja derrotada desde a morte e ressurreição do Senhor
Jesus.
Daí cantarmos jubilosos no Ofício de Vésperas do
Domingo de Páscoa, fazendo referência ao Senhor Jesus: “Ó vítima verdadeira, do
inferno a porta abris, livrais o povo escravo, dais vida ao infeliz. Da morte o
Cristo volta, a vida é seu troféu, o inferno traz cativo, a todos abre o céu”.
Eis como se entende que, apesar de tantos males que
assolam a humanidade, especialmente o mal moral causado pelo próprio ser
humano, devemos viver, conscientemente, a nossa fé. Fé no Deus vivo e
verdadeiro que passa pela cruz, aparentemente derrotado, mas não fica nela.
Ressuscita como primícias dos que morreram, ou seja, como modelo ou exemplar do
que também acontecerá conosco após as peripécias deste mundo, conforme nos
estimula o Salmo 24,14: “Espera no Senhor e tem coragem! Espera no Senhor”!
Confiantes, pois, em Deus que tudo fez por nós,
batalhemos e acreditemos que a vida sempre terá a última palavra, pois sabemos
que o bem sempre vence o mal, pela força redentora da cruz gloriosa do Senhor
Jesus!
Fonte: CNBB